“Candaces”
“Falar de Candace... É preciso olhar pra trás para
ir pra frente. Porque atrás de nós tem um espelho e é nele que está nossa cara
verdadeira. Nosso espelho é um espelho de Rainhas. Rainhas-Mães, Rainhas
Guerreiras. Candaces. Somos herdeiros dessas Rainhas, temos a fala de nossos
ancestrais”. (Trecho da peça Candaces – A Reconstrução do Fogo)
Candaces, dinastia de rainhas da África Oriental
que comandaram, antes da era cristã, um dos mais prósperos impérios do
continente.
Mais do que uma linhagem de rainhas, Candace
torna-se um conceito, através do qual a força da mulher negra se faz presente
em lutas, conquistas e no legado matriarcal que venceu o tempo e as distâncias.
As Mães
Feiticeiras
Do grande continente africano trazemos não só a
origem, mas também toda uma crença ancestral que exalta a figura feminina como
a grande provedora que principiou a vida do Homem.
Um desses mitos conta que no início de tudo,
ligadas às origens da Terra, havia as Mães Feiticeiras. Donas do destino da
humanidade, elas eram o ventre do mundo. Conhecedoras dos segredos da vida. Continham
em si a capacidade de manipular os opostos e, assim, manter o equilíbrio do
universo. Traziam consigo a força criadora e criativa do planeta. Raízes de um
misticismo que abrigava em sua sabedoria a dualidade do cosmos. Detinham o
poder sobre a vida e a morte, o bem e o mal, o amor e a cólera, o princípio e o
fim.
As Ascendentes Candaces
Do mito à história, através do exemplo de duas
grandes rainhas da Antigüidade, exaltamos o comando de mulheres negras sobre
seus povos. Assim, evocamos a primeira ascendente Candace: Mekeda, ou Rainha de
Sabá. Reino das mil fragrâncias, confluência das culturas
árabe e africana. Sabá era uma terra rica e mantinha uma sociedade matrilinear,
em que o poder era passado aos descendentes pela via feminina. Ali viveu a
exuberante Rainha Negra. Atraída pela fama de riqueza e sabedoria que envolvia
Salomão, o rei dos judeus, Mekeda adentrou Jerusalém com uma comitiva de
camelos, levando uma infinidade de aromas e grande quantidade de ouro e pedras
preciosas. Desse encontro nasceu a reverência à mulher que cativou com beleza,
inteligência e diplomacia um dos soberanos mais importantes de sua época.
Do Oriente, rumo ao império dos faraós, surge mais
um exemplo do poder feminino negro. Nefertiti reinou no Egito por mais de uma
década durante o apogeu de uma civilização que iria influenciar toda a
humanidade. Reverenciada por sua beleza, governou ao lado de Amenófis IV
(Akhenaton) com status equivalente ao dele. Juntos implementaram reformas
culturais e religiosas, dentre elas o culto ao Deus Sol Aton. Foi imortalizada
em templos mais do que qualquer outra rainha egípcia.
Candaces
Ao sul do Egito, banhado pelo Nilo, havia o Império
Meroe. Era governado por uma dinastia de soberanas negras que exerciam o poder
civil e militar. Imortalizadas pela história como Candaces, estas bravas
guerreiras nasceram sob o signo da coragem para ocupar posição de poder e
prestígio. Numa forma de conexão com as tradições matriarcais da África,
reinavam sobre seu povo por direito próprio, e não da qualidade de esposas.
Viviam o apogeu de uma era de esplendor e fartura
abençoados pelo grande rio, e impulsionadas pelo comércio com o Oriente Médio.
A localização do império permitia um intenso intercâmbio com outros povos –
hebreus, assírios, persas, gregos e indianos. Em suas terras, ricas em ferro e
metais preciosos, ergueram-se pirâmides e fortalezas.
Seus exércitos usavam armas de ferro e cavalaria,
ferramentas e habilidades herdadas dos povos núbios, que lhes davam vantagem no
campo de batalha. A idolatria daquela civilização pelos cavalos era tanta que
estes animais eram enterrados junto com seus guerreiros, para servi-los por
toda a eternidade. Esta imagem, misto de homem e cavalo, alcançou a Grécia,
inspirando o surgimento da figura mitológica do Centauro. Na religião,
cultuavam Apedemek, Deus da guerra e da vitória, representado por um homem com
cabeça de leão.
A prosperidade de Meroe, que deu prosseguimento ao
domínio Núbio na região, atraiu a ira dos senhores do mundo, o Império Romano.
Aqui tem início o episódio que marcou a história das Candaces.
Líderes de um movimento de resistência contra o
poderio bélico dos invasores enfrentaram o forte exército, aliando técnicas de
guerrilha e diplomacia. Uniram seu povo na luta contra o jugo romano movidas
pela sede de justiça e liberdade.
Após a invasão de Petronius, a Rainha Candace
esperou que as tropas do general adormecessem e os surpreendeu com um ataque.
Este movimento abriu a possibilidade para uma negociação diplomática, comandada
pela soberana negra. O resultado foi a retirada dos soldados romanos e a
demarcação do território de Meroe, devolvendo a paz ao seu povo. Assim foi
escrito o mais importante episódio que marcou a nobre dinastia de guerreiras
naquele império africano.
Mas os exemplos de comando e resistência de bravas
negras continuaram a florescer por outras eras e civilizações. Para além de
seus próprios domínios, emergiu a saga das Candaces, Rainhas-Mães que se
fizeram deusas, reinando na crença de suas descendentes espalhadas pela Terra,
porta-vozes da sua luta por toda a história.
As Descendentes
Várias luas se ergueram e se puseram no céu do
continente negro. Um dia, rainhas e princesas de tribos e reinos se viram
obrigadas ao trabalho forçado no novo mundo. Mas foi ali que fizeram
multiplicar o sangue Candace. Em uma terra tão distante, ligadas ao passado,
mulheres negras geraram o valor da bravura herdade de suas ancestrais.
A palavra liberdade ganhou um significado mítico no
Brasil, dando um novo sentido à vida levada entre a clausura e o trabalho
forçado. A bravura da dinastia Candace foi eternizada pela tradição oral africana,
que tratou de espalhar aos quatro cantos os grandes feitos das suas soberanas,
inspirando a luta de guerreiras que subverteram a força dos seus senhores e
lutaram pela liberdade. Para elas, ser livre era também
reverenciar seus costumes, reviver o passado soberano, encenar a memória dos
seus antepassados. Em folguedos, foram eternizadas na glória real da corte
negra. No novo continente, há o despertar para o misticismo trazido do outro
lado do Atlântico. A construção da identidade africana no Brasil encontra nas
celebrações e ritos toda uma reverência à mulher como mediadora entre os deuses
e a humanidade.
Na Bahia, as escravas “ganhadeiras” vendiam o
excedente de produção em feiras e mercados como em sua terra natal. O lucro era
poupado para comprar suas alforrias e a dos maridos, tornando-as mulheres com
voz ativa.
No chão brasileiro, era revivida a tradição das
feiras iorubanas, um espaço não só para trocas de mercadorias, mas também para
trocas simbólicas. A mulher concentrava o poder de fechar negócios, disseminar
notícias, modas, receitas, músicas, e, sobretudo, aconselhar. Assim, tornaram-se as grandes mães negras,
sacerdotisas que tiveram suprimido o poder real na África, mas que passaram a
exercer o poder espiritual no novo mundo.
Os elos entre arte e religião se tornaram mais
fortes. As mães de santo se transformavam em mães de samba. Tia Ciata, a mais
conhecida, era respeitada por sua sabedoria religiosa. Celebrava os orixás em
cerimônias em sua própria casa, que sucediam festas regadas a muita música,
batuques e quitutes. Um misto de consagração da música e dos deuses
afro-brasileiros.
Salve as Candaces do Candomblé, evocadas na saudação às entidades
femininas.
Odoyá, Iemanjá! Rainha das águas do mar;
Saluba, Nanã! Deusa da Terra;
Eparrei, Iansã! Senhora dos raios;
Orayê-yê o, Oxum! Guardiã da beleza e do amor;
Oba-xi, Obá! Senhora das águas revoltas.
Celebração de religião e do puro prazer de dar ao
corpo o gingado malemolente, fruto da persistência destas rainhas,
sacerdotisas, baianas, pastoras, mães negras do carnaval.
A Imortalidade
Mulher. Negra. Gênero e raça. São as Candaces dos
nossos dias, herdeiras do laço afro e da missão de semear esperança na Terra.
Provedoras da força que nos acompanha desde os primeiros passos. Detentoras do
relicário da arte em prol do coletivo.
Majestade, soberana, guardiã da sagrada chama da
vida, dona do carnaval. Derrama teu talento ao interpretar a história da raça;
enfeitiça os sentidos com tua beleza negra, libertando corpo e alma. Eleva-te
ao panteon das matriarcas ancestrais da África e invoca a Candace dentro de ti.
Resgata a força feminina das guerreiras imortais, Rainhas-Mães de todos os
tempos, para abençoar e iluminar teus filhos, emanando o Axé, poder vital da
bondade e do afeto, energia que comanda o mundo.
Hoje, recontamos as glórias de quem um dia cumpriu
seu destino e fez história, revivida sempre que alguém invocar teu nome. Salve
as Candaces! Raça e gênero num só coração.
(Renato Lage, Márcia Lávia e Departamento Cultural do G. R. E. S.
Acadêmicos do Salgueiro). Ano 2007.